Jornada de uma anti-heroína
escrito por vals em abril 26, 2010Não bastasse a condição de pobre, mulher e nordestina, Raimunda carrega a pecha de feia, segundos os padrões de beleza, e leporina, de fala fanhosa. Do início ao fim, ela tem consciência de sua diferença. A autocrítica dessa personagem e a perseverança em suplantar sua condição parecem corresponder à própria história da Companhia Harém de Teatro, em atividade há quase 25 anos em Teresina, Piauí, e com a qual me encontro pela primeira vez em 18 anos de jornalismo de teatro na capital paulista, distantes 2.792 quilômetros.
Raimunda Pinto, sim senhor! é comédia característica da obra popular do piauiense Francisco Pereira da Silva (1918-1985), com procedimento épico no trânsito ator/narrador. Conta a peregrinação de uma anti-heroína que parte de sua terra para fazer uma plástica não só nos lábios, mas no desenho da vida. Apesar de não explicitada sua gênese social, o público brasileiro identifica de perto esse cenário de desigualdades. Pereira situa o enredo em 1942, em Fortaleza, quando a cidade sofre os reflexos da Segunda Guerra Mundial, lá longe. Sucedem quadros dessa jornada pessoal: o encontro com um domador de cobras, o curso de enfermagem na então capital federal, o Rio, uma audiência com Getúlio Vargas, o envolvimento amoroso com um médico, com um empresário endinheirado e, sobretudo, com um costureiro que faz literalmente a sua cabeça.
Dessa plataforma de dramaturgia absurda, cujo ápice é a cena em que Raimunda está a bordo do Enola Gay, o bombardeiro americano que atacou Hiroshima e Nagasaki, o diretor Arimatan Martins centra em seus atores invariavelmente travestidos. Poucas variações de luz, cenário despojado, acompanhamento musical ao vivo. Entre eles, Francisco Pellé, na pela de Raimunda, compõe essa estranha e desviante mulher nordestina sem banalizá-la, longe da caricatura. Um homem interpreta uma mulher vítima de machismo e outra discriminações, eis um uma camada interessante.
A encenação é convencional à beça, segue à risca o grotesco, as alusões ao baixo ventre indicadas pelo texto, o que funciona bem na recepção pela plateia, apesar do desnível no ritmo. Há deficiências na enunciação dos atores, a maioria deles com a cara de nossos vizinhos, tipos que dificilmente diríamos que fazem teatro. São estranhamentos da Companhia Harém, a começar pelo título, dona de linguagem que, no todo, se aproxima do circo-teatro em sua relação sem rodeios e vasta dignidade.